sábado, agosto 24, 2013

6A

Em êxtase contido recebeu, nervoso, os sorrisos técnicos da tripulação e deslizou, o mais normalmente que conseguiu, pelo corredor até ao seu lugar.

Estava só na fila que lhe calhou em sorte o que lhe permitiu baixar-se e ficar tapado pela rigidez crescente dos assentos de classe turística.

Pouco bastou para que a segurança recentemente adquirida desse origem a uma sensação fortíssima de descompressão. Os olhos rebolaram e rapidamente caíram na imensidão da gruta ocular enegrecida pelas pálpebras inertes e pesadas.

Caprichosa, a mente recuara rapidamente no tempo até à mesa do Aviz onde a revelação parcial tivera lugar.

À sua frente, João, ainda atónito com o desleixo de Frederico rogava-lhe pragas em nome dos santos protectores das mais sagradas escrituras, papiros e papel ancestral.

A memória realçava o efeito de eco, similar ao da sensação de dor após uma (sempre inadvertida e indesejada) queimadura, latejando e repetindo as palavras: "este é um escrito único e de valor incalculável.

Pouco faltou para que as suas palavras pudessem confundir-se com as do intrépido Dr. Jones, Indiana. Em falta estaria "this belongs in a Museum!"

Em síntese, inexistia qualquer registo histórico de um livro que, pura e simplesmente, nunca havia sido escrito.

Totalmente redigido em latim correspondia a um relato aparentemente fiel do cerco de Lisboa de 1147 e da duríssima tomada da urbe aos mouros. Mas não só...

Por qualquer razão inexplicável o livro encontrava-se estupidamente bem conservado a ponto de iludir os mais atentos.

Aliás, o mais especialista dos especialistas rir-se-ia ao primeiro vislumbre daquele exemplar ou não fora  (aparentemente) uma tão grotesca e inconcebível obra forjada.

"Mas esse é, julgo, o verdadeiro propósito do livro, parecer inofensivo e inútil. Um escrito cuja existência física o ridiculariza de tal forma que o torna imediatamente repudiável e destinatário do desprezo de qualquer escolástico.

Alguém teve um cuidado extremo em tornar este livro aparentemente inofensivo. Sabiam o que estavam a fazer".

Depois, em gesto nitidamente ensaiado pelo sonho, o indicador repousou sobre uma das primeiras folhas salientando, precisamente o seu tamanho peculiar.

Um sinal sonoro precedeu a gravação dos procedimentos de segurança que continuava a relembrar os passageiros, ao fim de 527 vôos da sua existência, de tudo quanto se esforçavam para não saber. Evitando assim, pensavam, tornar real o desastre e o risco ínfimo de alguma vez vir a concretizar-se. 

Estava ensonado.

Abriu momentaneamente os olhos, mas cedo voltou a ceder... E a entrar na gruta escura e traiçoeira da memória. 




sexta-feira, agosto 16, 2013

Now boarding...

O vulto arrumava os seus pertences e preparava-se para ir para a fila. 

Num ápice, abriu-se o gate e logo atravessaram o asfalto do aeroporto a pé até ao avião.

Frederico, sempre atrás em contra luz...

Nesse instante, o indivíduo leva o telemóvel ao ouvido, depois de um toque insonoro e pára. Olha em redor como se procurasse alguém no seu rasto e contra todas expectativas inverte a marcha e começa a dirigir-se novamente para a porta de embarque.

Encadeado, Frederico não percebe exactamente onde está o homem, nem para onde está a olhar. Por isso, baixa os olhos e finge estar a procurar o lugar no bilhete. O vulto aumenta a velocidade, sempre com o telemóvel em riste, e apesar de não dizer uma palavra percebe-se que está determinado e furioso. 

Frederico levanta os olhos para procurá-lo no preciso momento em que é sacudido pela mochila tropa do "dito". Não se ouviu "desculpe" nem "não faz mal", mas apenas "ah... Aqui está ele". 

O homem estancara-se depois de ultrapassar Frederico e retomara, agora atrás dele, o afluente humano seguindo o seu curso.

Nunca é fiel a descrição do incómodo sentido por quem é seguido e tem essa precisa consciência. 

Frederico não controlava nada e qualquer manobra para retomar a sua posição de vantagem visual e estratégica era agora impossível e contraproducente.

Para piorar as coisas sentia a respiração acelerada do homem que parecia ter quase 2 metros. Teria sido descoberto?

A fila humana abranda e pára junto ao avião e a mochila volta a tocar-lhe, mas agora nas costas de Frederico.

"Ele está mesmo aqui..."






quinta-feira, agosto 15, 2013

EZY7607


9 dias haviam decorrido desde o encontro com João. 
Um livro aparentemente inofensivo gerara uma confusão tremenda no já muito pouco rotineiro dia-a-dia de Frederico.

A sua vida assemelhava-se agora àqueles casacos que podem ser usados pelo "avesso".  

E sem que o pudesse prever duas semanas antes, Frederico escondia-se agora, a uma distância segura, na quinta fileira de cadeiras a contar da parede junto à porta de embarque 205.

Igualmente sentado, mas de costas, o actual portador do livro mantinha-se hirto aguardando a chamada para o vôo que os levaria a um destino final, concreto que só ele, indivíduo seguido, conhecia.

Frederico não havia escolhido previamente o seu lugar no avião e por isso preparava-se já para que o acaso, maldoso e banhado em capricho, lhes destinasse cadeiras adjacentes. Unindo-os como os uniu o livro.

Olhando intermitentemente para o vulto, não fosse reparar no seu seguidor, segurou à altura dos olhos a impressão que fizera a partir da internet do texto "Guerra e santidade: o cavaleiro-mártir Henrique de Bona e a conquista Cristã de Lisboa", de Armando de Sousa Pereira.

Sabia que a curta distância existente entre o texto e o livro não eram uma mera coincidência e se o dito vulto se fizesse acompanhar de segundo elemento, qualquer vislumbre do teor daquele texto seria fatal. Apesar do risco Frederico não se continha. Já difícil era encontrar-se a 20 metros do exemplar único e não poder tocar-lhe...

De repente, ao seu lado senta-se uma jovem nitidamente acelerada, cheia de sacos. Trocam sorrisos de cortesia, não fosse a espera um denominador comum que força o convívio entre futuros passageiros. Sorri embora ela lhe pareça preocupada com algo. 
- "Excusez moi... Est-ce que vous parlez Français?
- un petit peu...
- Vous allez à Paris?
- non, à Madeira, Funchal.
- ah... (Novo sorriso de cortesia).

Ele enterra-se na leitura e sem esperar muito ouve: "partida com destino ao Funchal..."

terça-feira, agosto 06, 2013

Primeiro dia de multa


- Diz-me, o que achas disto? - amparado pelas duas mãos o exemplar único foi depositado em cima da mesa e empurrado apenas por uma na direcção de João.
O peculiar livro roubou imediatamente o protagonismo das pratas, da fina cutelaria e dos manjares do Restaurante Aviz, onde haviam combinado encontrar-se para almoçar.

Era Terça-feira e Frederico ainda conservava em seu poder o objecto fonte de desvaire de José Mogno ou, simplesmente "Zé" quando era preciso pedir-lhe qualquer coisa, nomeadamente tempo.
O prazo terminara e o Zé havia passado todo o dia anterior a ligar-lhe, sem sucesso. Percebia-se: estava bem lixado.

João pusera de parte os talheres e, enquanto saboreava o maravilhoso pampo de Setúbal que se desfazia na boca, media agora cirurgicamente com os olhos, a uma distância considerável, o livro de capa grossa azul escura à sua frente.

Gostava de adivinhar a origem, a história e as pessoas que antes dele tinham estado em contacto com os objectos incomuns que Frederico lhe trazia.

Intrigado pela falta de apresentação ou explicação prévia - o que significava que Frederico não sabia nada sobre o livro - esboçou um sorriso de notório entusiasmo. Tinha prazer em ajudar, sobretudo quando a sua "bagagem", como gostava de lhe chamar, lho permitia.
Havia ainda algo de paternal na forma como João encarava estas interpelações de Frederico, como recebia as suas dúvidas, mas sobretudo como as esclarecia.

Estendeu a observação com ausência de toque até onde a sua curiosidade deixou.

Subitamente, lançou-se sobre ele, sentindo as rugosidades, tomando o seu peso e levando à fronte, tapando completamente a cara.

Fê-lo de forma despreocupada ignorando simplesmente os demais presentes na sala e, até, a perdiz invertida presa à parede que parecia olhar também para ele.

Em seguida, baixou o livro descobrindo os olhos fechados, não adormecidos, mas perscrutadores.

Ouviu-se um murmúrio repetitivo, uma lengalenga ou mnemónica sussurrada...os sons indiferenciados ganharam corpo e fisicalidade:
- gramagem, fibra, ph, espessura, coloração, textura, humidade, marca de água!

E abriu-o.

Por detrás da capa, apenas os olhos iluminados e brilhantes mexiam. Incrédulos pareciam.

Segundos depois num gesto que pareceu uma repulsa controlada deitou o objecto em cima da mesa e dirigiu a Frederico um olhar enraivecido que a voz acompanhou.

- Tu estás parvo!? Nestes anos todos não aprendeste nada? Tu fazes ideia do que é isto?

Sem permitir qualquer resposta, levantou-se e atravessou, como um raio, as portas de saloon em direcção à cozinha do Restaurante.

Segundos depois, ainda enraivecido, surgiu pela porta empunhando uma tesoura, película transparente e algo branco de plástico ou de borracha.

Sentou-se e com a destreza própria de alguém que sabe o que faz, desenrolou o tubo de celofane curtando uma pequena tira. Aproximou-se, então, um empregado com um copo contendo uma pequena quantidade de arroz que João despejou dentro da folha de celofane e enrolou em forma de saco, dando um nó na ponta. Calçou as luvas de borracha, pegou no livro e encostando o pequeno saco de arroz à capa deu sucessivas voltas com a película até ficar completamente coberto. Cortou com a tesoura o excedente.

Descalçou as luvas e devolveu todo o material ao empregado que ao ouvir "obrigado" se retirou com um vénia sincera e de admiração.

João viu-o afastar-se para dentro da cozinha e quando as portas retornaram com o efeito da mola, encarou Frederico.

- Agora nós. Quero saber como chegou este livro às tuas MÃOS!



segunda-feira, agosto 05, 2013

9:07

O toque do telefone, indistinto no mundo Apple que se vai apoderando lentamente de todos nós, fez ainda assim com que Frederico acordasse sobressaltado, não sabendo se era efectivamente o seu telefone a tocar.
O livro, com o susto, saiu disparado do seu peito para cima da mesa rasteira que tinha à sua frente, ao lado do pufe.
- Estou sim, bom dia? - disse com o seu melhor fingir de quem está há muito acordado.
- Então? Acordaste agora? Espero que já tenhas lido o livro. A pessoa que o emprestou chateou-me o fim-de-semana todo para ter cuidado com ele, and so on and so on.
- Não é leitura fácil, Zé... Ainda me faltam umas trinta páginas. Preciso de mais tempo - Frederico mentia descaradamente e de forma completamente paradoxal. Normalmente quando lhe faltava texto afirmava já ter lido o exemplar, mas ainda assim necessitava de uma revisão extra, para ter a certeza. A verdade é que Frederico havia lido o livro duas vezes e não queria perdê-lo de vista. Qualquer coisa de muito estranho existia naquela encadernação e embora pretendesse digitalizar o texto, sentia que algo mais se escondia fisicamente naquelas páginas, capa e marca de água de autor.
- Quanto tempo mais? Oh Frederico deixa-te de coisas sim, isso não é assim tão grande. Já reviste livros com o dobro do tamanho em metade do tempo! Como "ainda me faltam umas trinta páginas"? Amanhã de manhã vens entregar-mo em mão... 9 horas no escritório, sharp.
- deal - retorquiu Frederico.

O telefone emitira de imediato o som de "bloqueado" antes de penetrado pela carga eléctrica, também ela geradora de som, mas que nenhum jus faz ao verbo que descreve o movimento.

Os seus olhos viraram-se para o livro que  aterrara de pernas para o ar, capa aberta em jeito de telhado enquanto as folhas se mantinham penduradas. A luz do candeeiro incidia agora sobre as folhas e foi com particular espanto que pôde confirmar as suas suspeitas. 

Verificou que as folhas não eram efectivamente rectangulares e que embora o livro estivesse apoiado na capa rija o espaço que distava entre as folhas e mesa era menor na parte superior destas. A diferença era pequena, subtil ao ponto de parecer mero erro de encadernação. Mas Frederico sabia que um livro tão aprumadamente concebido não padecia de tão grosseiro desleixo.

Entusiasmado com tal descoberta dirigiu-se ao quarto de estudo, onde albergava todas as relíquias e os instrumentos Indispensáveis à sua análise e abriu a fotocopiadora, também ela uma pré-relíquia.
Frederico tinha dificuldade em deitar fora os resquícios da sua vivência. Guardava tudo com medo de que ficassem esquecidos no tempo, memórias, factos e ele próprio. 
O seu quarto de estudo era uma divisão temida pelas outras. Tinha o dom de expandir-se contaminando as demais com a loucura do depósito. Desde o papel da mercearia ao mais elaborado recibo de uma viagem que fizera há dez anos. Este espírito era transversal a outros objectos pessoais, felizmente escapando aos responsáveis pela sua higiene pessoal.
Mas este padrão estava a ser diariamente invertido, o que era uma vitória, lenta, mas ainda assim uma vitória 

Pegou no livro e com o cuidado característico de um arqueólogo - que não era - digitalizou uma a uma as páginas do livro.

A cada clarão vertical de luz reparou que o papel, apesar de quase translúcido exibia alguma marcas aparentemente inocentes, inofensivas e inadvertidas.

Mas a sua existência não era mero acaso como o facto das últimas palavras do parágrafo anterior começarem com o prefixo "in". 

Marcas diferentes consoante a página e riscos e desenhos bem ocultados pela capa que absorvia toda a atenção do leitor.

Frederico confirmou que as marcas não eram transferidas para o formato digital nem para a cópia que delas fez de imediato.

Sentou-se então a analisar o tamanho das folhas e a reproduzi-lo nas cópias.

Atónico, confirmou que o formato não era coincidência ou imprecisão indesejada.

As folham estavam... (fim de bateria deste iPhone).






domingo, agosto 04, 2013

O primeiro encontro

Era madrugada de segunda-feira. Frederico deixara-se vencer, exausto, pelo texto misterioso e sem que se apercebesse, caiu num sono profundo depois da sua leitura ininterrupta.
O estranho livro repousava-lhe agora no peito amparado por uma das mãos, enquanto a outra, inerte, estendia-se ao longo do corpo, situada no final do seu braço esguio, relembrando a copa de uma palmeira no topo de um tronco comprido, seco e hirsuto.

A imagem assemelhava-se a um soldado morto em combate tapando a ferida com um livro com a sua mão direita a pressioná-lo, como se de um curativo se tratasse.

No interior do labirinto Rem, completamente alheio aos movimentos pélvicos sonoros dos vizinhos de cima, rajadas de raios de luz intensos, um ambiente aquático, movimentos lentos.

Um olhar distinguia-se das imagens que serpenteavam na água. Pertencia a uma personagem com um escudo brilhante que à medida que o movimento intermitente se dava, desembainhava uma espada.

Seguem-se agora flashes ritmados e duas palavras. A primeira "armigero". A segunda o nome "Henrique".

Frederico sonhava com Henrique.

sexta-feira, agosto 02, 2013

A Empresa

FM sentara-se na cadeira de "trabalho" e esticando as pernas sobre o pufe preto preparava-se para mais uma noitada.
Como sempre o envelope acolchoado chegara-lhe às mãos por correio expresso momentos antes.
Era sexta-feira e, o mais tardar, na manhã de segunda-feira seguinte o envelope tinha de ser devolvido pela mesma via.
Munido da sua lapiseira de combate recostou-se na cadeira procurando uma posição cómoda, acendeu um candeeiro de luz intensa mas agradável e asseverou-se de que ao esticar o braço conseguia chegar à somersby gelada que tirara directamente do congelador.
Faltava-lhe a música: de preferência instrumental, sem letra.
Done.
Suspirou e num gesto mais lento do que esse mesmo gesto imaginado, enfiou a mão dentro do envelope amarelo como se fosse uma cabeça de cobra a esgueirar-se para dentro de um buraco escuro. Abocanhou o interior e, de imediato, arrastou a presa para fora segura pelos dentes digitais.
O exemplar desta semana tinha bom ar, agradável ao tacto, capa nada pretensiosa e discreta, estranhamente discreta.
Não havia semblante na contracapa e nada lhe dizia o apelido que singularizava aquele nome próprio gasto pertencente ao autor.

Gostava de os receber já encadernados, de sentir o papel na ponta dos dedos e de os cheirar.
Tudo isso faz parte do prazer da leitura, dizia, um lugar comum talvez, mas verdadeiro.

Para variar, este tinha um cheiro complexo e maravilhoso, indiciando uma impressão cara, fora do comum, mas contraditoriamente seca e monocolor.

Acompanhava-o um bilhete manuscrito com explicações directas e acutilantes, o que não era normal:
"Caro Frederico, hoje não te peço que revejas o texto. Diz-me antes o que achas dele, mas no prazo do costume. Atenção, é exemplar único, edição do próprio autor. Muito, Muito cuidado porque não há outro. Abraço, Zeca."
  
Como havia acontecido tantas vezes antes, embora agora o pedido fosse distinto, sentia que era o primeiro a tocar na versão física daquela obra, a ler o seu interior e a ter uma opinião sobre o resultado final, antes de tudo e todos.

De facto, o livro que segurava à altura dos olhos não exibia marcas, evidências de toque ou qualquer outro vestígio da presença humana naquelas folhas.

A sensação de privilégio durava sempre escassos segundos e esta semana, com mais razão de ser, tinha nas mãos um desafio ímpar: 232 páginas para pouco mais de 48 horas de um livro misterioso.

A palavra ULVINGA preenchia solitariamente a primeira folha e três páginas depois:

" Não sabia o Senhor que na maior das penumbras, quando me encarregava do seu cavalo ou em horas de merecido descanso os meus olhos, que tudo viam, sentiam a necessidade de deixar rastos das suas divinas intervenções. Se for esse o desígnio de Deus, encontrará em mim relato fiel da sua vontade espalhada pelas mãos de Popteto, alcançando Felicitas Julia Olisippo."

Instintivamente Frederico ajeitou os óculos e exclamou: Olá!? Mas o que é isto...?