segunda-feira, junho 30, 2003

Lisboa em Estado de Sítio


Este Texto simples saiu na edição 0 da Revista Estado de Sítio da Faculdade de Direito de Lisboa e achei interessante transcrevê-lo para aqui. Quaisquer reparos ou reclamações que queiram fazer quanto ao conteúdo do mesmo, façam o favor de contactar o laboratório responsável pelos medicamentos que fui obrigado a tomar durante os referidos 10 dias.

Recordar Lisboa

Foi preciso ouvir as duras palavras do médico que me confinam, a partir de hoje, às quatro paredes do meu quarto, para se acabar a enorme “branca” que me impedia de falar sobre a minha cidade.
Diz, quem sabe, que damos sempre mais valor, ou melhor, o valor devido, quando perdemos alguma coisa.
Eu acabei de perder a minha liberdade por 10 longos dias.
E é nestas alturas, que sentimos falta das coisas mais incríveis: dos donos dos cães, que se deixam passear pontualmente, todas as manhãs, de olhos fechados quase; das buzinas usualmente irritantes e impacientes daqueles que saem tarde de casa e que reclamam por já estarem atrasados; do cheiro a pão fresco que todos os dias me entra pela janela, cada vez que passo pela padaria do Sr. João.
Pormenores, é certo, mas não é a nossa vida enriquecida por eles?
Esta cidade onde vivo está recheada deles.
Ao longe, embalada pelo fado dos recantos alfacinhas, desfila uma neblina pelo Tejo. O nosso Tejo! - Apregoam as peixeiras nas suas bancas, chamando a clientela que, de olho clínico, procura aqui e ali manchas suspeitas nos pobres peixes. Mal sabem estas senhoras que o Tejo está alugado (como se diz na linguagem dos Drs.) aos habitantes da capital e que por qualquer forma de Usu capião, vai sendo cada vez mais nosso.
E quase na foz, mais uma imagem típica, os pequenos, mas velhinhos cacilheiros que com a avidez que lhes resta, dançam de lá para cá, concentrados na força da corrente.
A memória é realmente uma coisa fabulosa.
Se os olhos não vêem, mas já viram, basta tocar num botão, acende-se uma luz e voilá...uma recordação.
Mas a memória é coisa perigosa, pelo menos no que diz respeito a Lisboa. A correria das pessoas da capital, dos transportes, dos prédios que crescem em cada espacinho vazio, arrepiam qualquer um e surpreendem os mais descuidados.
Lisboa vive deste ritmo.
Muda sem aviso. Sem referendo.
A sua beleza, temporariamente abalada pelos mamarrachos que estão na moda, rapidamente se restabelece reflectindo aquele sol bem clarinho, que ultimamente tem pregado muitas partidas.
É esta a cidade do “antigamente não era assim”, da feira da ladra, da feira popular, das corridas do campo pequeno, do Marquês que, junto ao seu leão, troça da dificuldade de percorrer a sua rotunda com o veículo ileso.
Felizmente, há coisas que nunca mudam, mesmo que passemos 10 dias fechados em casa.

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