terça-feira, fevereiro 10, 2004

Lost


Faltam poucos segundos...
Ouço as vozes estranhas do lado de fora da porta.
Quando a porta se abre, as mesmas vozes, antes misturadas sob a forma da voz do público, agora dispersam-se pelos corpos que vão entrando na sala e que lentamente, um a um, vão ocupando as cadeiras.
A escolha é rápida, porque o tempo é inimigo da visão, dos pormenores que se vão imiscuindo nos movimentos e no cenário, isto se tivermos o azar de ficar longe da acção, de onde tudo se passa.
Respiro por detrás do cortinado. Não tenho outra alternativa.
É irónico como estes momentos que antecedem o inevitável, podem ser tão contraditórios: o nervoso de quem aguarda em silêncio deste lado, e o burburinho de quem, afinal, também espera... ... e desta vez... ...também pelo Godot.
O coração bate forte, porque o texto decidiu fugir da memória e alojar-se nas nossas roupas, nos adereços ou no palco. E tudo está prestes a... ... ...
Interrompido "o pensar" que acontecia, pelo que já acontece, desligou-se a luz que iluminava as cadeiras, e as caras são reflexos esporádicos.
A liberdade de agir, de pensar e de falar estão agora limitadas.
Durante 2 horas, proponho-me a abdicar destas liberdades, juntamente com 3 amigos.
Durante todo esse tempo, não seremos nós, não existiremos senão noutra peça de Teatro se alguém se atrever a fazer de Henrique Gomes, a fazer de mim.
Agora que penso nisso, tinha piada que alguém se ocupasse da minha personalidade enquanto eu me ocupo da de outra pessoa, mesmo que esse alguém seja fictício.
E para quem defende a existência de uma alma, será que quando represento tenho duas almas, ou só uma? Se só tiver uma, o que distingue a existência de uma personalidade da existência de uma alma?
Chamar-se-á a isto "representar", exactamente por inexistir uma alma nessa personagem? Por me ser unicamente possível demonstrar como seria, e não, sê-lo verdadeiramente?

Questões em demasia para quem já está em palco... ... ...
De facto, não vejo o público, mas é ele que me mantém numa mentira quase verdadeira, que me espicaça a necessidade de o convencer de que sou efectivamente o X ou o Y.
Mesmo assim, sei que o que digo não faz de mim "a pessoa" que o costuma dizer.
Nem tal depende do facto de eu ser, ou não, um bom actor!

Ser um bom actor, não é convencer que se é!
Ser um bom actor é ter a lata de se admitir que se é o Sr. X, de o escrever inclusivamente na ficha técnica da peça e mesmo assim, ter a coragem de convencer o público que poderia muito bem ser-se o Sr. Y ou Sr. Z.

Chegou a altura de me calar... ... ...
O público está a bater palmas.

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