quarta-feira, julho 13, 2005

Dedos de conversa



As privações levam-nos a mergulhar nas questões mais profundas.

Vejamos, por exemplo, o que me aconteceu ontem. Depois de um jogo disputadíssimo de futebol de salão, em que devo ter perdido 10 a 15% de mim tal eram calor e suor, cheguei a casa e preparando-me para me deleitar com um misto de chuveiro quente e frio... ... não tenho ÁGUA?!

De repente, a necessidade imediata desdobra-se numa avalanche de impedimentos, que me levariam a ter de lavar os dentes com água do luso, não tomar banho antes de me vestir para ir para o escritório no dia seguinte... ...and so on and so on.

Não fossem os avózinhos estarem em casa, ah e terem água!!!!

Dá que pensar a quantidade de privações prontas a manifestar-se, diariamente, quando menos esperamos e quando mais precisamos.

Ter como garantidas determinadas coisas na vida, pelo que sinto e vejo, torna-nos inconscientes afinal de contas da sua preciosidade e essencialidade.

Como respondia ontem a um colega jogador, a verdade é que tenho imenso receio da debilidade física, de algum dia querer mexer-me e as pernas não responderem à vontade, como antes. Por isso corro o mais que posso, ou pelo menos tento, o que para a minha idade não é nada mau.

É que o critério da idade também releva para além das múltiplas condicionantes futuras, menos agradáveis é certo, e que nada têm a ver com a incapacidade física ocorrida por decurso do tempo.

Como pode ser, pois, desagradável não ter electricidade em casa ou água.
Como de repente, somos de novo homens das cavernas, que à custa de um pavio e cera, nos vemos novamente limitados num mundo de sombras que dançam acompanhando a chama.

Perder a vista, outro dos medos de quem mais gosta de apalpar as cores com o olhar, é uma penosidade que reconhecemos, também diariamente, quando damos a moedinha ao invisual que percorre as carruagens do metro.
E muitos dão-na não por pena dele, mas como reacção ao pânico pessoal de um dia ficarem assim, como se o pudessem evitar desonerando-se com uma esmolinha.

Ler o mundo através do tacto, não é certamente suficiente para satisfazer as ansiedades humanas, muito menos das de quem se vê forçado a conhecê-lo, ponto por ponto, através da ponta dos dedos.

E nem sempre há tradução simultânea em todas as coisas do mundo, nomeadamente a escrita do Nobel Saramago que nem os invisuais poupa, com a ausência de pontos finais nas frases.
Nem poderiam ler este post...

Proponho que façam um experiência:

Durante dez minutos limitem-se a ouvir os sons circundantes.
Durante outros dez minutos, passem pelos locais que percorrem todos os dias, desta vez procurando novos pormenores, que a pressa impede que sejam encontrados.
Durante uma refeição, prestem atenção aos odores e cheiros dos ingredientes e procurem descobri-los.
Finalmente, deixem as vossas papilas gostativas provarem algo de diferente...

Depois digam como foi!

Sem comentários: