domingo, julho 28, 2013

Paus "inhos"

Atrasado, saltou da mota e atravessou a rua a correr.
Do lado de cá, o seu olhar fixou firmemente o letreiro escarlate em cima da vitrine, com meia dúzia de caracteres. Era ali mesmo.

Retirou o capacete, onde de imediato depositou as luvas para não se esquecer e entrou pela porta de mola.

Era o último.

Sorriu, com uma vergonha de adulto, sabendo que as desculpas, à medida que se vai crescendo, são reduzidas a dois graus: indispensável e inevitável.
Não há a protecção da mãe ou do pai, a responsabilidade é de quem faz ou deixa de fazer. Encaramos e somos encarados. Interagimos com as "ferramentas" adquiridas, por vezes de forma inconsciente, depois de lançados das margens seguras para o leito do rio. E é certo que a corrente não mais nos faz regressar.
Passamos a ser a senhora e senhor "apelido". 

Não tinha sido o João, o Pedro ou o André a chegar atrasado, mas o Martins, Frederico Martins.

A partir de um determinado momento na vida passamos a ser essencialmente apelidos...a ter responsabilidade e a ter de assumi-la.

Analisando a gravidade do seu acto, manteve o sorriso e fazendo uma careta de quem reconhece a asneira e o incómodo da espera, ainda assim desculpável, disse: "sorry!"

Os pratos de sempre chegaram à mesa e cedo preencheram a tigela onde gostava de misturar sabores e texturas.
Hmmmm... Como adorava a diversidade.

Do seu lado esquerdo, três crianças orientais olhavam com a curiosidade típica da idade o interior de um aquário onde lagosta e sapateira, inertes, observavam as bolhas incessantes da bomba de água e o nada que com elas habitava o espaço.
Não tão típica foi a curiosidade de um pai  ou tio oriental a admirá-las.

Pedir marisco num restaurante chinês quando os próprios nem sabem o que é, não há de ser prato muito típico, pensou.

Por alguma razão aqueles dois animais, e apenas aqueles dois, continuavam há muito naquele tanque criteriosamente limpo.
Inexplicável era também a expressão quase imutável dos empregados. Nunca os vira sorrir ou reagir fosse ao que fosse. Desconhecia anedotas em chinês, mas estava em crer que nem a melhor delas fá-los-ia estremecer, ou esboçar indício de contentamento.

O olhos voltaram a desviar-se para esquerda, mas a sapateira e a lagosta mantinham-se imóveis, reparou...

O ritual familiar durou pouco mais de uma hora e meia, por entre a surdez e a cegueira precoce dos mais idosos e o lost in translation de que as 3 gerações presentes padeciam.

Seguiram-se os beijos e os abraços, sob o olhar teimosamente desatento dos empregados.

Os pausinhos quedaram-se em cima da mesa depois da batalha travada juntamente com alguns talheres virgens. 

E tudo persistirá igual até à próxima visita...

..."mãe, mãe! Esta mexeu-se!"...

Ou talvez não.











sexta-feira, julho 26, 2013

Diminutivinho

Frederico usava ocasionalmente o sufixo inho para carinhosamente dirigir-se ao seu avô.
Não raras vezes empregava-o aqui e ali para complementar outras palavras, longe de pensar que tal uso ou costume (convicção de obrigatoriedade?) podia abrir-lhe um porta para a alma e, há quem diga, para o seu âmago emocional evidenciando o que só o coração alberga longe do olho nu.

...Naquela tarde, os imprevistos expuseram as imperfeições e os defeitos de Frederico. Desde o milímetro de rúcula firmemente agarrado a um pré-molar, até à condução aparentemente frenética, mas só ansiosa.
O rapaz queria que tudo corresse bem, porque ele estava bem e isso notava-se. Ela estava sentada ao seu lado e assistia a tudo.
Eis que um dos diminutivos ousou sair-lhe tão naturalmente da boca e, depois de um silêncio quase inexistente, ouviu-a deixar escorregar em jeito de prognose: "sabes que quem usa diminutivos (diz-se que) tem carências afectivas".
Não bastavam as íris oceânicas que o fulminavam e que o punham fora de si, a rajada concertada de palavras abateu-se sobre ele e bloqueou-lhe a reacção.
Gracejou, perdido no labirinto das respostas possíveis, debatendo-se nas areias movediças da incerteza que subitamente o engoliam.

Nada lhe saía enquanto analisava a afirmação procurando indícios da sua veracidade...nada.

Sou uma pessoa sensível - foi a única coisa que conseguiu dizer-lhe.

O incidente não foi esquecido... Mas lentamente, com o crepúsculo à vista, a tarde começou a desembrulhar-se como um abraço de pétalas que na presença do sol se desfaz e as estende para fora, ledas, exibindo as suas cores exóticas, o seu interior...

O tempo contado personificado no adulto que retira bruscamente o rebuçado da boca da criança, anunciou o fim do baile de copos, de olhares, de conhecimento e mensuração. O sorriso instalara-se no rosto de Frederico sem que se apercebesse, tão atordoado que estava. Procurava manter o "rebuçado na boca" um pouco mais, um pouco mais.

Flashforward...................................

....Entrou no seu carro num "estalar de dedos" porque o "diabo esfregava de forma propositadamente lenta o olho". E ela sabia-o.
Ele ainda sorri...

"I am Jack's cold sweat."

terça-feira, julho 23, 2013

chá gelado

No ziguezague ordeiro das duas rodas, atravessou Lisboa até desembocar no Jardim do Príncipe Real. Com o desfalecer do motor a máquina endiabrada inclinou-se naturalmente para a esquerda e assim repousou, apoiada num singelo pedaço de metal a tudo resistente. O capacete saiu-lhe em câmara lenta, descobrindo-lhe o rosto e devolvendo-lhe integralmente a audição. Esfregou lentamente a testa ainda marcada pelo casco protector e retirou as luvas enquanto olhava em redor. "Que dia lindo" - disse com o seu sorriso. E, de facto, as árvores espreguiçavam-se sob o sol quente e entusiasmado tocando-se reciprocamente num abraço orgânico e telúrico. As pessoas transportavam felicidade e bem-estar sob diversas formas e feitios, cores e cheiros. E como era intenso e agradável o perfume que ali se fazia sentir. O tempo ali parava. Pelo menos assim parecia. Dirigiu-se ao quiosque arqui-inimigo do conhecido "Oliveira", este situado no extremo oposto da Rua, em linha recta, e pediu um chá gelado. Servido, sentou-se nas cadeiras metálicas e deixou que o seu olhar se perdesse pelos movimentos contínuos dos gestos, do fumo dos cigarros, das aterragens de emergência dos pássaros, dos cães impacientes e dos transeuntes agradavelmente perdidos à procura de pontos de referência. A palhinha que se afundara no copo de plástico ecológico tinha sido dada a escolher de entre mais de uma dezena que se abriu em leque à sua frente. Aproximou-a dos lábios e num sorver curto mas intenso, molhou-os e inundou toda a sua boca com aquele refresco. Vinha a pensar nele desde o início do dia. 6:30 tinha sido a hora do fragilizado acordar. O sonho que tanto o incomodara estava agora a dissipar-se e a tranquilidade instalava-se, finalmente. O vento soprava intermitentemente e de vez em quando fazia das suas. Um guardanapo havia agora sido empurrado para fora da mesa que estava precisamente à sua frente e veio embater no seu sapato. Debruçou-se instintivamente para o apanhar e na simultaneidade dos acasos e das coincidências, ao baixar-se foi primeiro fuzilado e, depois, cercado por um perfume que nunca tinha provado. A sua cabeça descaiu ao de leve rodando sobre si própria enquanto os olhos se fechavam tentando decifrar com mais acuidade a natureza daquele tão raríssimo e perturbante odor. Provinha de um pescoço desconcertante, descoberto, absolutamente nu e maravilhoso. A esguia constituição terminava num rosto doce e terno. Sentiu perfeitamente que a sua boca se abrira involuntariamente e não conseguiu evitá-lo. Por seu turno, ela sorria como se tivesse dado o nome àquele movimento de lábios, de maçãs de rosto, expondo-se totalmente e arrasando tudo à volta com a sua onda de choque. Subitamente, apercebendo-se do efeito causado inverteu o seu sentido de marcha e com ar maroto dirigiu-se a Frederico e: "sabe que tem um ar magnífico...isso que está a beber.
O que é?"

segunda-feira, julho 22, 2013

Dentadas da realidade.

Acordara com os raios de sol silenciosos a percorrer os edifícios lá fora, limpando-os lentamente dos vestígios da noite. O mundo era do astro, novamente, por pouco mais de 12 horas.
Hoje tinha sido muito duro.
A noite trouxera-lhe sonhos vívidos, uma cama de hospital, uma enfermeira aliada a dizer-lhe que havia chorado com o nada: "O nada, aquele nada que o Frederico detesta ouvir convertido em impossibilidade inultrapassável. Chorei porque os exames não estavam tão bem como esperávamos, mas já passou". 
Perguntei-lhe claro está, de forma ingénua, até para mim, se então já sabia o resultado. Nem precisou de responder.
Não houve sim, nem não.
Uma máquina precipitou-se sobre mim, não sem antes me olhar ao espelho. Estava de olhos azuis (tratamento ou lentes?), com uma touca branca (o sonho a metaforizar a falta de cabelo) vestido de branco. Uma voz sonolenta de quem se vai arrastando para o seu destino drenado de forças.
Perguntei-lhe então que podia ter eu feito antes para evitar aquela cama, aquele veredicto, aquela violência do tempo conscientemente contado. Lembro-me de lhe ter perguntado se comer menos gorduras ajudava. "Ajuda sempre"- respondeu-me enquanto delicadamente me dirigia um vestígio de falsa esperança. 
"Já pensaste em congelar-te?"
Lembro-me ter ouvido isto sentindo que, de repente, parecia existir uma bolsa de ar. Esperança sob a forma de uma proposta tão descabida e etérea.
Disse-lhe apenas: "tirem-me daqui que não aguento mais estar aqui fechado". Arranjem-me um máquina para eu levar, que eu não aguento mais isto."

Nessa altura do sonho um tubo orientado entrou-me pela boca a dentro inspeccionando os meus dentes, um a um, enquanto a enfermeira, cujo nome não me recordo, se fechava na sala dos comandos.

Acordei com uma calma incompreensível, sentei-me na borda da cama e deixei-me ficar a olhar para os prédios lá fora.
...e agora...?

domingo, julho 21, 2013

Leituras


Na cama, um código de barras composto por meias com as letras FM bordadas invisivelmente. Gémeas e clones separados como num jogo de pares didáctico onde o número ímpar antevê dificuldade no reencontro. É um lugar-comum...mas real e, de facto, incompreensível.
Frederico passara a manhã a ler, não o jornal que comprara bem cedo para um familiar de locomoção reduzida e que era carinhosamente tratado pelos familiares com o sufixo "...inho", mas "Os Maias".
- O jornal contém uma alma! - dizia o "inho" - Sei bem quando o leram antes de mim, sente-se logo no toque!
Não fosse ter razão, o jornal permanecia intocado... Com excepção de uma chamada de página lida à distância de quase 2 metros.
A imaginação centrava-se, agora, em João da Ega rindo-se durante minutos com a actualidade da seguinte passagem:

" « - Enfim – exclamou o Ega -, se não aparecerem as mulheres, importam-se, que é em Portugal para tudo recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima, com os direitos da Alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas…"

Prólogo


Os seus dedos eram traiçoeiros.
Se a cabeça pecava em pensamento as mãos davam-lhe corpo e realidade.
E sem que se apercebesse o chocolate entrava-lhe no sistema, talvez por carência, por curiosidade ou desejo secreto de concretização imediata necessária.
Conhecia outros prazeres, mas era honesto e decente, não sucumbia por definição aos impulsos e estímulos corporais, nem por exemplo às conversas de pescoço em discotecas barulhentas onde as palavras eram sopradas e causavam arrepios, ao bater ao de leve na pele. Procurava-se.
Mas não se deixava ir, agora, pela corrente forte dos acontecimentos.
Pela primeira vez determinava o seu destino, sem o conhecer ou prever, embora receoso e manifestamente desamparado. Parece que assim teria de ser, haviam-lhe dito.

Adormecia na cama, embora o sofá o conhecesse melhor. Conhecia-lhe as formas, as mudanças, e albergava as suas marcas de guerra, as lágrimas e os muito excepcionais amplos abraços do vinho tinto. Cúmplice das marcas roxas e do tanto amor que lá se fez. 
Não fala, mas sente.

Frederico Martins estava vivo e sentia-o pelos solavancos da sua mota, rebelde e possante enquanto atravessava, sob a forma de raio de luz, a marginal industrial até casa.

Embora veloz, espera qualquer coisa... Há muito que aguarda e não sabe o quê...
... Mas sente que está para muito muito breve...