sábado, agosto 24, 2013

6A

Em êxtase contido recebeu, nervoso, os sorrisos técnicos da tripulação e deslizou, o mais normalmente que conseguiu, pelo corredor até ao seu lugar.

Estava só na fila que lhe calhou em sorte o que lhe permitiu baixar-se e ficar tapado pela rigidez crescente dos assentos de classe turística.

Pouco bastou para que a segurança recentemente adquirida desse origem a uma sensação fortíssima de descompressão. Os olhos rebolaram e rapidamente caíram na imensidão da gruta ocular enegrecida pelas pálpebras inertes e pesadas.

Caprichosa, a mente recuara rapidamente no tempo até à mesa do Aviz onde a revelação parcial tivera lugar.

À sua frente, João, ainda atónito com o desleixo de Frederico rogava-lhe pragas em nome dos santos protectores das mais sagradas escrituras, papiros e papel ancestral.

A memória realçava o efeito de eco, similar ao da sensação de dor após uma (sempre inadvertida e indesejada) queimadura, latejando e repetindo as palavras: "este é um escrito único e de valor incalculável.

Pouco faltou para que as suas palavras pudessem confundir-se com as do intrépido Dr. Jones, Indiana. Em falta estaria "this belongs in a Museum!"

Em síntese, inexistia qualquer registo histórico de um livro que, pura e simplesmente, nunca havia sido escrito.

Totalmente redigido em latim correspondia a um relato aparentemente fiel do cerco de Lisboa de 1147 e da duríssima tomada da urbe aos mouros. Mas não só...

Por qualquer razão inexplicável o livro encontrava-se estupidamente bem conservado a ponto de iludir os mais atentos.

Aliás, o mais especialista dos especialistas rir-se-ia ao primeiro vislumbre daquele exemplar ou não fora  (aparentemente) uma tão grotesca e inconcebível obra forjada.

"Mas esse é, julgo, o verdadeiro propósito do livro, parecer inofensivo e inútil. Um escrito cuja existência física o ridiculariza de tal forma que o torna imediatamente repudiável e destinatário do desprezo de qualquer escolástico.

Alguém teve um cuidado extremo em tornar este livro aparentemente inofensivo. Sabiam o que estavam a fazer".

Depois, em gesto nitidamente ensaiado pelo sonho, o indicador repousou sobre uma das primeiras folhas salientando, precisamente o seu tamanho peculiar.

Um sinal sonoro precedeu a gravação dos procedimentos de segurança que continuava a relembrar os passageiros, ao fim de 527 vôos da sua existência, de tudo quanto se esforçavam para não saber. Evitando assim, pensavam, tornar real o desastre e o risco ínfimo de alguma vez vir a concretizar-se. 

Estava ensonado.

Abriu momentaneamente os olhos, mas cedo voltou a ceder... E a entrar na gruta escura e traiçoeira da memória. 




sexta-feira, agosto 16, 2013

Now boarding...

O vulto arrumava os seus pertences e preparava-se para ir para a fila. 

Num ápice, abriu-se o gate e logo atravessaram o asfalto do aeroporto a pé até ao avião.

Frederico, sempre atrás em contra luz...

Nesse instante, o indivíduo leva o telemóvel ao ouvido, depois de um toque insonoro e pára. Olha em redor como se procurasse alguém no seu rasto e contra todas expectativas inverte a marcha e começa a dirigir-se novamente para a porta de embarque.

Encadeado, Frederico não percebe exactamente onde está o homem, nem para onde está a olhar. Por isso, baixa os olhos e finge estar a procurar o lugar no bilhete. O vulto aumenta a velocidade, sempre com o telemóvel em riste, e apesar de não dizer uma palavra percebe-se que está determinado e furioso. 

Frederico levanta os olhos para procurá-lo no preciso momento em que é sacudido pela mochila tropa do "dito". Não se ouviu "desculpe" nem "não faz mal", mas apenas "ah... Aqui está ele". 

O homem estancara-se depois de ultrapassar Frederico e retomara, agora atrás dele, o afluente humano seguindo o seu curso.

Nunca é fiel a descrição do incómodo sentido por quem é seguido e tem essa precisa consciência. 

Frederico não controlava nada e qualquer manobra para retomar a sua posição de vantagem visual e estratégica era agora impossível e contraproducente.

Para piorar as coisas sentia a respiração acelerada do homem que parecia ter quase 2 metros. Teria sido descoberto?

A fila humana abranda e pára junto ao avião e a mochila volta a tocar-lhe, mas agora nas costas de Frederico.

"Ele está mesmo aqui..."






quinta-feira, agosto 15, 2013

EZY7607


9 dias haviam decorrido desde o encontro com João. 
Um livro aparentemente inofensivo gerara uma confusão tremenda no já muito pouco rotineiro dia-a-dia de Frederico.

A sua vida assemelhava-se agora àqueles casacos que podem ser usados pelo "avesso".  

E sem que o pudesse prever duas semanas antes, Frederico escondia-se agora, a uma distância segura, na quinta fileira de cadeiras a contar da parede junto à porta de embarque 205.

Igualmente sentado, mas de costas, o actual portador do livro mantinha-se hirto aguardando a chamada para o vôo que os levaria a um destino final, concreto que só ele, indivíduo seguido, conhecia.

Frederico não havia escolhido previamente o seu lugar no avião e por isso preparava-se já para que o acaso, maldoso e banhado em capricho, lhes destinasse cadeiras adjacentes. Unindo-os como os uniu o livro.

Olhando intermitentemente para o vulto, não fosse reparar no seu seguidor, segurou à altura dos olhos a impressão que fizera a partir da internet do texto "Guerra e santidade: o cavaleiro-mártir Henrique de Bona e a conquista Cristã de Lisboa", de Armando de Sousa Pereira.

Sabia que a curta distância existente entre o texto e o livro não eram uma mera coincidência e se o dito vulto se fizesse acompanhar de segundo elemento, qualquer vislumbre do teor daquele texto seria fatal. Apesar do risco Frederico não se continha. Já difícil era encontrar-se a 20 metros do exemplar único e não poder tocar-lhe...

De repente, ao seu lado senta-se uma jovem nitidamente acelerada, cheia de sacos. Trocam sorrisos de cortesia, não fosse a espera um denominador comum que força o convívio entre futuros passageiros. Sorri embora ela lhe pareça preocupada com algo. 
- "Excusez moi... Est-ce que vous parlez Français?
- un petit peu...
- Vous allez à Paris?
- non, à Madeira, Funchal.
- ah... (Novo sorriso de cortesia).

Ele enterra-se na leitura e sem esperar muito ouve: "partida com destino ao Funchal..."

terça-feira, agosto 06, 2013

Primeiro dia de multa


- Diz-me, o que achas disto? - amparado pelas duas mãos o exemplar único foi depositado em cima da mesa e empurrado apenas por uma na direcção de João.
O peculiar livro roubou imediatamente o protagonismo das pratas, da fina cutelaria e dos manjares do Restaurante Aviz, onde haviam combinado encontrar-se para almoçar.

Era Terça-feira e Frederico ainda conservava em seu poder o objecto fonte de desvaire de José Mogno ou, simplesmente "Zé" quando era preciso pedir-lhe qualquer coisa, nomeadamente tempo.
O prazo terminara e o Zé havia passado todo o dia anterior a ligar-lhe, sem sucesso. Percebia-se: estava bem lixado.

João pusera de parte os talheres e, enquanto saboreava o maravilhoso pampo de Setúbal que se desfazia na boca, media agora cirurgicamente com os olhos, a uma distância considerável, o livro de capa grossa azul escura à sua frente.

Gostava de adivinhar a origem, a história e as pessoas que antes dele tinham estado em contacto com os objectos incomuns que Frederico lhe trazia.

Intrigado pela falta de apresentação ou explicação prévia - o que significava que Frederico não sabia nada sobre o livro - esboçou um sorriso de notório entusiasmo. Tinha prazer em ajudar, sobretudo quando a sua "bagagem", como gostava de lhe chamar, lho permitia.
Havia ainda algo de paternal na forma como João encarava estas interpelações de Frederico, como recebia as suas dúvidas, mas sobretudo como as esclarecia.

Estendeu a observação com ausência de toque até onde a sua curiosidade deixou.

Subitamente, lançou-se sobre ele, sentindo as rugosidades, tomando o seu peso e levando à fronte, tapando completamente a cara.

Fê-lo de forma despreocupada ignorando simplesmente os demais presentes na sala e, até, a perdiz invertida presa à parede que parecia olhar também para ele.

Em seguida, baixou o livro descobrindo os olhos fechados, não adormecidos, mas perscrutadores.

Ouviu-se um murmúrio repetitivo, uma lengalenga ou mnemónica sussurrada...os sons indiferenciados ganharam corpo e fisicalidade:
- gramagem, fibra, ph, espessura, coloração, textura, humidade, marca de água!

E abriu-o.

Por detrás da capa, apenas os olhos iluminados e brilhantes mexiam. Incrédulos pareciam.

Segundos depois num gesto que pareceu uma repulsa controlada deitou o objecto em cima da mesa e dirigiu a Frederico um olhar enraivecido que a voz acompanhou.

- Tu estás parvo!? Nestes anos todos não aprendeste nada? Tu fazes ideia do que é isto?

Sem permitir qualquer resposta, levantou-se e atravessou, como um raio, as portas de saloon em direcção à cozinha do Restaurante.

Segundos depois, ainda enraivecido, surgiu pela porta empunhando uma tesoura, película transparente e algo branco de plástico ou de borracha.

Sentou-se e com a destreza própria de alguém que sabe o que faz, desenrolou o tubo de celofane curtando uma pequena tira. Aproximou-se, então, um empregado com um copo contendo uma pequena quantidade de arroz que João despejou dentro da folha de celofane e enrolou em forma de saco, dando um nó na ponta. Calçou as luvas de borracha, pegou no livro e encostando o pequeno saco de arroz à capa deu sucessivas voltas com a película até ficar completamente coberto. Cortou com a tesoura o excedente.

Descalçou as luvas e devolveu todo o material ao empregado que ao ouvir "obrigado" se retirou com um vénia sincera e de admiração.

João viu-o afastar-se para dentro da cozinha e quando as portas retornaram com o efeito da mola, encarou Frederico.

- Agora nós. Quero saber como chegou este livro às tuas MÃOS!



segunda-feira, agosto 05, 2013

9:07

O toque do telefone, indistinto no mundo Apple que se vai apoderando lentamente de todos nós, fez ainda assim com que Frederico acordasse sobressaltado, não sabendo se era efectivamente o seu telefone a tocar.
O livro, com o susto, saiu disparado do seu peito para cima da mesa rasteira que tinha à sua frente, ao lado do pufe.
- Estou sim, bom dia? - disse com o seu melhor fingir de quem está há muito acordado.
- Então? Acordaste agora? Espero que já tenhas lido o livro. A pessoa que o emprestou chateou-me o fim-de-semana todo para ter cuidado com ele, and so on and so on.
- Não é leitura fácil, Zé... Ainda me faltam umas trinta páginas. Preciso de mais tempo - Frederico mentia descaradamente e de forma completamente paradoxal. Normalmente quando lhe faltava texto afirmava já ter lido o exemplar, mas ainda assim necessitava de uma revisão extra, para ter a certeza. A verdade é que Frederico havia lido o livro duas vezes e não queria perdê-lo de vista. Qualquer coisa de muito estranho existia naquela encadernação e embora pretendesse digitalizar o texto, sentia que algo mais se escondia fisicamente naquelas páginas, capa e marca de água de autor.
- Quanto tempo mais? Oh Frederico deixa-te de coisas sim, isso não é assim tão grande. Já reviste livros com o dobro do tamanho em metade do tempo! Como "ainda me faltam umas trinta páginas"? Amanhã de manhã vens entregar-mo em mão... 9 horas no escritório, sharp.
- deal - retorquiu Frederico.

O telefone emitira de imediato o som de "bloqueado" antes de penetrado pela carga eléctrica, também ela geradora de som, mas que nenhum jus faz ao verbo que descreve o movimento.

Os seus olhos viraram-se para o livro que  aterrara de pernas para o ar, capa aberta em jeito de telhado enquanto as folhas se mantinham penduradas. A luz do candeeiro incidia agora sobre as folhas e foi com particular espanto que pôde confirmar as suas suspeitas. 

Verificou que as folhas não eram efectivamente rectangulares e que embora o livro estivesse apoiado na capa rija o espaço que distava entre as folhas e mesa era menor na parte superior destas. A diferença era pequena, subtil ao ponto de parecer mero erro de encadernação. Mas Frederico sabia que um livro tão aprumadamente concebido não padecia de tão grosseiro desleixo.

Entusiasmado com tal descoberta dirigiu-se ao quarto de estudo, onde albergava todas as relíquias e os instrumentos Indispensáveis à sua análise e abriu a fotocopiadora, também ela uma pré-relíquia.
Frederico tinha dificuldade em deitar fora os resquícios da sua vivência. Guardava tudo com medo de que ficassem esquecidos no tempo, memórias, factos e ele próprio. 
O seu quarto de estudo era uma divisão temida pelas outras. Tinha o dom de expandir-se contaminando as demais com a loucura do depósito. Desde o papel da mercearia ao mais elaborado recibo de uma viagem que fizera há dez anos. Este espírito era transversal a outros objectos pessoais, felizmente escapando aos responsáveis pela sua higiene pessoal.
Mas este padrão estava a ser diariamente invertido, o que era uma vitória, lenta, mas ainda assim uma vitória 

Pegou no livro e com o cuidado característico de um arqueólogo - que não era - digitalizou uma a uma as páginas do livro.

A cada clarão vertical de luz reparou que o papel, apesar de quase translúcido exibia alguma marcas aparentemente inocentes, inofensivas e inadvertidas.

Mas a sua existência não era mero acaso como o facto das últimas palavras do parágrafo anterior começarem com o prefixo "in". 

Marcas diferentes consoante a página e riscos e desenhos bem ocultados pela capa que absorvia toda a atenção do leitor.

Frederico confirmou que as marcas não eram transferidas para o formato digital nem para a cópia que delas fez de imediato.

Sentou-se então a analisar o tamanho das folhas e a reproduzi-lo nas cópias.

Atónico, confirmou que o formato não era coincidência ou imprecisão indesejada.

As folham estavam... (fim de bateria deste iPhone).






domingo, agosto 04, 2013

O primeiro encontro

Era madrugada de segunda-feira. Frederico deixara-se vencer, exausto, pelo texto misterioso e sem que se apercebesse, caiu num sono profundo depois da sua leitura ininterrupta.
O estranho livro repousava-lhe agora no peito amparado por uma das mãos, enquanto a outra, inerte, estendia-se ao longo do corpo, situada no final do seu braço esguio, relembrando a copa de uma palmeira no topo de um tronco comprido, seco e hirsuto.

A imagem assemelhava-se a um soldado morto em combate tapando a ferida com um livro com a sua mão direita a pressioná-lo, como se de um curativo se tratasse.

No interior do labirinto Rem, completamente alheio aos movimentos pélvicos sonoros dos vizinhos de cima, rajadas de raios de luz intensos, um ambiente aquático, movimentos lentos.

Um olhar distinguia-se das imagens que serpenteavam na água. Pertencia a uma personagem com um escudo brilhante que à medida que o movimento intermitente se dava, desembainhava uma espada.

Seguem-se agora flashes ritmados e duas palavras. A primeira "armigero". A segunda o nome "Henrique".

Frederico sonhava com Henrique.

sexta-feira, agosto 02, 2013

A Empresa

FM sentara-se na cadeira de "trabalho" e esticando as pernas sobre o pufe preto preparava-se para mais uma noitada.
Como sempre o envelope acolchoado chegara-lhe às mãos por correio expresso momentos antes.
Era sexta-feira e, o mais tardar, na manhã de segunda-feira seguinte o envelope tinha de ser devolvido pela mesma via.
Munido da sua lapiseira de combate recostou-se na cadeira procurando uma posição cómoda, acendeu um candeeiro de luz intensa mas agradável e asseverou-se de que ao esticar o braço conseguia chegar à somersby gelada que tirara directamente do congelador.
Faltava-lhe a música: de preferência instrumental, sem letra.
Done.
Suspirou e num gesto mais lento do que esse mesmo gesto imaginado, enfiou a mão dentro do envelope amarelo como se fosse uma cabeça de cobra a esgueirar-se para dentro de um buraco escuro. Abocanhou o interior e, de imediato, arrastou a presa para fora segura pelos dentes digitais.
O exemplar desta semana tinha bom ar, agradável ao tacto, capa nada pretensiosa e discreta, estranhamente discreta.
Não havia semblante na contracapa e nada lhe dizia o apelido que singularizava aquele nome próprio gasto pertencente ao autor.

Gostava de os receber já encadernados, de sentir o papel na ponta dos dedos e de os cheirar.
Tudo isso faz parte do prazer da leitura, dizia, um lugar comum talvez, mas verdadeiro.

Para variar, este tinha um cheiro complexo e maravilhoso, indiciando uma impressão cara, fora do comum, mas contraditoriamente seca e monocolor.

Acompanhava-o um bilhete manuscrito com explicações directas e acutilantes, o que não era normal:
"Caro Frederico, hoje não te peço que revejas o texto. Diz-me antes o que achas dele, mas no prazo do costume. Atenção, é exemplar único, edição do próprio autor. Muito, Muito cuidado porque não há outro. Abraço, Zeca."
  
Como havia acontecido tantas vezes antes, embora agora o pedido fosse distinto, sentia que era o primeiro a tocar na versão física daquela obra, a ler o seu interior e a ter uma opinião sobre o resultado final, antes de tudo e todos.

De facto, o livro que segurava à altura dos olhos não exibia marcas, evidências de toque ou qualquer outro vestígio da presença humana naquelas folhas.

A sensação de privilégio durava sempre escassos segundos e esta semana, com mais razão de ser, tinha nas mãos um desafio ímpar: 232 páginas para pouco mais de 48 horas de um livro misterioso.

A palavra ULVINGA preenchia solitariamente a primeira folha e três páginas depois:

" Não sabia o Senhor que na maior das penumbras, quando me encarregava do seu cavalo ou em horas de merecido descanso os meus olhos, que tudo viam, sentiam a necessidade de deixar rastos das suas divinas intervenções. Se for esse o desígnio de Deus, encontrará em mim relato fiel da sua vontade espalhada pelas mãos de Popteto, alcançando Felicitas Julia Olisippo."

Instintivamente Frederico ajeitou os óculos e exclamou: Olá!? Mas o que é isto...? 


 

domingo, julho 28, 2013

Paus "inhos"

Atrasado, saltou da mota e atravessou a rua a correr.
Do lado de cá, o seu olhar fixou firmemente o letreiro escarlate em cima da vitrine, com meia dúzia de caracteres. Era ali mesmo.

Retirou o capacete, onde de imediato depositou as luvas para não se esquecer e entrou pela porta de mola.

Era o último.

Sorriu, com uma vergonha de adulto, sabendo que as desculpas, à medida que se vai crescendo, são reduzidas a dois graus: indispensável e inevitável.
Não há a protecção da mãe ou do pai, a responsabilidade é de quem faz ou deixa de fazer. Encaramos e somos encarados. Interagimos com as "ferramentas" adquiridas, por vezes de forma inconsciente, depois de lançados das margens seguras para o leito do rio. E é certo que a corrente não mais nos faz regressar.
Passamos a ser a senhora e senhor "apelido". 

Não tinha sido o João, o Pedro ou o André a chegar atrasado, mas o Martins, Frederico Martins.

A partir de um determinado momento na vida passamos a ser essencialmente apelidos...a ter responsabilidade e a ter de assumi-la.

Analisando a gravidade do seu acto, manteve o sorriso e fazendo uma careta de quem reconhece a asneira e o incómodo da espera, ainda assim desculpável, disse: "sorry!"

Os pratos de sempre chegaram à mesa e cedo preencheram a tigela onde gostava de misturar sabores e texturas.
Hmmmm... Como adorava a diversidade.

Do seu lado esquerdo, três crianças orientais olhavam com a curiosidade típica da idade o interior de um aquário onde lagosta e sapateira, inertes, observavam as bolhas incessantes da bomba de água e o nada que com elas habitava o espaço.
Não tão típica foi a curiosidade de um pai  ou tio oriental a admirá-las.

Pedir marisco num restaurante chinês quando os próprios nem sabem o que é, não há de ser prato muito típico, pensou.

Por alguma razão aqueles dois animais, e apenas aqueles dois, continuavam há muito naquele tanque criteriosamente limpo.
Inexplicável era também a expressão quase imutável dos empregados. Nunca os vira sorrir ou reagir fosse ao que fosse. Desconhecia anedotas em chinês, mas estava em crer que nem a melhor delas fá-los-ia estremecer, ou esboçar indício de contentamento.

O olhos voltaram a desviar-se para esquerda, mas a sapateira e a lagosta mantinham-se imóveis, reparou...

O ritual familiar durou pouco mais de uma hora e meia, por entre a surdez e a cegueira precoce dos mais idosos e o lost in translation de que as 3 gerações presentes padeciam.

Seguiram-se os beijos e os abraços, sob o olhar teimosamente desatento dos empregados.

Os pausinhos quedaram-se em cima da mesa depois da batalha travada juntamente com alguns talheres virgens. 

E tudo persistirá igual até à próxima visita...

..."mãe, mãe! Esta mexeu-se!"...

Ou talvez não.











sexta-feira, julho 26, 2013

Diminutivinho

Frederico usava ocasionalmente o sufixo inho para carinhosamente dirigir-se ao seu avô.
Não raras vezes empregava-o aqui e ali para complementar outras palavras, longe de pensar que tal uso ou costume (convicção de obrigatoriedade?) podia abrir-lhe um porta para a alma e, há quem diga, para o seu âmago emocional evidenciando o que só o coração alberga longe do olho nu.

...Naquela tarde, os imprevistos expuseram as imperfeições e os defeitos de Frederico. Desde o milímetro de rúcula firmemente agarrado a um pré-molar, até à condução aparentemente frenética, mas só ansiosa.
O rapaz queria que tudo corresse bem, porque ele estava bem e isso notava-se. Ela estava sentada ao seu lado e assistia a tudo.
Eis que um dos diminutivos ousou sair-lhe tão naturalmente da boca e, depois de um silêncio quase inexistente, ouviu-a deixar escorregar em jeito de prognose: "sabes que quem usa diminutivos (diz-se que) tem carências afectivas".
Não bastavam as íris oceânicas que o fulminavam e que o punham fora de si, a rajada concertada de palavras abateu-se sobre ele e bloqueou-lhe a reacção.
Gracejou, perdido no labirinto das respostas possíveis, debatendo-se nas areias movediças da incerteza que subitamente o engoliam.

Nada lhe saía enquanto analisava a afirmação procurando indícios da sua veracidade...nada.

Sou uma pessoa sensível - foi a única coisa que conseguiu dizer-lhe.

O incidente não foi esquecido... Mas lentamente, com o crepúsculo à vista, a tarde começou a desembrulhar-se como um abraço de pétalas que na presença do sol se desfaz e as estende para fora, ledas, exibindo as suas cores exóticas, o seu interior...

O tempo contado personificado no adulto que retira bruscamente o rebuçado da boca da criança, anunciou o fim do baile de copos, de olhares, de conhecimento e mensuração. O sorriso instalara-se no rosto de Frederico sem que se apercebesse, tão atordoado que estava. Procurava manter o "rebuçado na boca" um pouco mais, um pouco mais.

Flashforward...................................

....Entrou no seu carro num "estalar de dedos" porque o "diabo esfregava de forma propositadamente lenta o olho". E ela sabia-o.
Ele ainda sorri...

"I am Jack's cold sweat."

terça-feira, julho 23, 2013

chá gelado

No ziguezague ordeiro das duas rodas, atravessou Lisboa até desembocar no Jardim do Príncipe Real. Com o desfalecer do motor a máquina endiabrada inclinou-se naturalmente para a esquerda e assim repousou, apoiada num singelo pedaço de metal a tudo resistente. O capacete saiu-lhe em câmara lenta, descobrindo-lhe o rosto e devolvendo-lhe integralmente a audição. Esfregou lentamente a testa ainda marcada pelo casco protector e retirou as luvas enquanto olhava em redor. "Que dia lindo" - disse com o seu sorriso. E, de facto, as árvores espreguiçavam-se sob o sol quente e entusiasmado tocando-se reciprocamente num abraço orgânico e telúrico. As pessoas transportavam felicidade e bem-estar sob diversas formas e feitios, cores e cheiros. E como era intenso e agradável o perfume que ali se fazia sentir. O tempo ali parava. Pelo menos assim parecia. Dirigiu-se ao quiosque arqui-inimigo do conhecido "Oliveira", este situado no extremo oposto da Rua, em linha recta, e pediu um chá gelado. Servido, sentou-se nas cadeiras metálicas e deixou que o seu olhar se perdesse pelos movimentos contínuos dos gestos, do fumo dos cigarros, das aterragens de emergência dos pássaros, dos cães impacientes e dos transeuntes agradavelmente perdidos à procura de pontos de referência. A palhinha que se afundara no copo de plástico ecológico tinha sido dada a escolher de entre mais de uma dezena que se abriu em leque à sua frente. Aproximou-a dos lábios e num sorver curto mas intenso, molhou-os e inundou toda a sua boca com aquele refresco. Vinha a pensar nele desde o início do dia. 6:30 tinha sido a hora do fragilizado acordar. O sonho que tanto o incomodara estava agora a dissipar-se e a tranquilidade instalava-se, finalmente. O vento soprava intermitentemente e de vez em quando fazia das suas. Um guardanapo havia agora sido empurrado para fora da mesa que estava precisamente à sua frente e veio embater no seu sapato. Debruçou-se instintivamente para o apanhar e na simultaneidade dos acasos e das coincidências, ao baixar-se foi primeiro fuzilado e, depois, cercado por um perfume que nunca tinha provado. A sua cabeça descaiu ao de leve rodando sobre si própria enquanto os olhos se fechavam tentando decifrar com mais acuidade a natureza daquele tão raríssimo e perturbante odor. Provinha de um pescoço desconcertante, descoberto, absolutamente nu e maravilhoso. A esguia constituição terminava num rosto doce e terno. Sentiu perfeitamente que a sua boca se abrira involuntariamente e não conseguiu evitá-lo. Por seu turno, ela sorria como se tivesse dado o nome àquele movimento de lábios, de maçãs de rosto, expondo-se totalmente e arrasando tudo à volta com a sua onda de choque. Subitamente, apercebendo-se do efeito causado inverteu o seu sentido de marcha e com ar maroto dirigiu-se a Frederico e: "sabe que tem um ar magnífico...isso que está a beber.
O que é?"

segunda-feira, julho 22, 2013

Dentadas da realidade.

Acordara com os raios de sol silenciosos a percorrer os edifícios lá fora, limpando-os lentamente dos vestígios da noite. O mundo era do astro, novamente, por pouco mais de 12 horas.
Hoje tinha sido muito duro.
A noite trouxera-lhe sonhos vívidos, uma cama de hospital, uma enfermeira aliada a dizer-lhe que havia chorado com o nada: "O nada, aquele nada que o Frederico detesta ouvir convertido em impossibilidade inultrapassável. Chorei porque os exames não estavam tão bem como esperávamos, mas já passou". 
Perguntei-lhe claro está, de forma ingénua, até para mim, se então já sabia o resultado. Nem precisou de responder.
Não houve sim, nem não.
Uma máquina precipitou-se sobre mim, não sem antes me olhar ao espelho. Estava de olhos azuis (tratamento ou lentes?), com uma touca branca (o sonho a metaforizar a falta de cabelo) vestido de branco. Uma voz sonolenta de quem se vai arrastando para o seu destino drenado de forças.
Perguntei-lhe então que podia ter eu feito antes para evitar aquela cama, aquele veredicto, aquela violência do tempo conscientemente contado. Lembro-me de lhe ter perguntado se comer menos gorduras ajudava. "Ajuda sempre"- respondeu-me enquanto delicadamente me dirigia um vestígio de falsa esperança. 
"Já pensaste em congelar-te?"
Lembro-me ter ouvido isto sentindo que, de repente, parecia existir uma bolsa de ar. Esperança sob a forma de uma proposta tão descabida e etérea.
Disse-lhe apenas: "tirem-me daqui que não aguento mais estar aqui fechado". Arranjem-me um máquina para eu levar, que eu não aguento mais isto."

Nessa altura do sonho um tubo orientado entrou-me pela boca a dentro inspeccionando os meus dentes, um a um, enquanto a enfermeira, cujo nome não me recordo, se fechava na sala dos comandos.

Acordei com uma calma incompreensível, sentei-me na borda da cama e deixei-me ficar a olhar para os prédios lá fora.
...e agora...?

domingo, julho 21, 2013

Leituras


Na cama, um código de barras composto por meias com as letras FM bordadas invisivelmente. Gémeas e clones separados como num jogo de pares didáctico onde o número ímpar antevê dificuldade no reencontro. É um lugar-comum...mas real e, de facto, incompreensível.
Frederico passara a manhã a ler, não o jornal que comprara bem cedo para um familiar de locomoção reduzida e que era carinhosamente tratado pelos familiares com o sufixo "...inho", mas "Os Maias".
- O jornal contém uma alma! - dizia o "inho" - Sei bem quando o leram antes de mim, sente-se logo no toque!
Não fosse ter razão, o jornal permanecia intocado... Com excepção de uma chamada de página lida à distância de quase 2 metros.
A imaginação centrava-se, agora, em João da Ega rindo-se durante minutos com a actualidade da seguinte passagem:

" « - Enfim – exclamou o Ega -, se não aparecerem as mulheres, importam-se, que é em Portugal para tudo recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima, com os direitos da Alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas…"

Prólogo


Os seus dedos eram traiçoeiros.
Se a cabeça pecava em pensamento as mãos davam-lhe corpo e realidade.
E sem que se apercebesse o chocolate entrava-lhe no sistema, talvez por carência, por curiosidade ou desejo secreto de concretização imediata necessária.
Conhecia outros prazeres, mas era honesto e decente, não sucumbia por definição aos impulsos e estímulos corporais, nem por exemplo às conversas de pescoço em discotecas barulhentas onde as palavras eram sopradas e causavam arrepios, ao bater ao de leve na pele. Procurava-se.
Mas não se deixava ir, agora, pela corrente forte dos acontecimentos.
Pela primeira vez determinava o seu destino, sem o conhecer ou prever, embora receoso e manifestamente desamparado. Parece que assim teria de ser, haviam-lhe dito.

Adormecia na cama, embora o sofá o conhecesse melhor. Conhecia-lhe as formas, as mudanças, e albergava as suas marcas de guerra, as lágrimas e os muito excepcionais amplos abraços do vinho tinto. Cúmplice das marcas roxas e do tanto amor que lá se fez. 
Não fala, mas sente.

Frederico Martins estava vivo e sentia-o pelos solavancos da sua mota, rebelde e possante enquanto atravessava, sob a forma de raio de luz, a marginal industrial até casa.

Embora veloz, espera qualquer coisa... Há muito que aguarda e não sabe o quê...
... Mas sente que está para muito muito breve...