sexta-feira, agosto 02, 2013

A Empresa

FM sentara-se na cadeira de "trabalho" e esticando as pernas sobre o pufe preto preparava-se para mais uma noitada.
Como sempre o envelope acolchoado chegara-lhe às mãos por correio expresso momentos antes.
Era sexta-feira e, o mais tardar, na manhã de segunda-feira seguinte o envelope tinha de ser devolvido pela mesma via.
Munido da sua lapiseira de combate recostou-se na cadeira procurando uma posição cómoda, acendeu um candeeiro de luz intensa mas agradável e asseverou-se de que ao esticar o braço conseguia chegar à somersby gelada que tirara directamente do congelador.
Faltava-lhe a música: de preferência instrumental, sem letra.
Done.
Suspirou e num gesto mais lento do que esse mesmo gesto imaginado, enfiou a mão dentro do envelope amarelo como se fosse uma cabeça de cobra a esgueirar-se para dentro de um buraco escuro. Abocanhou o interior e, de imediato, arrastou a presa para fora segura pelos dentes digitais.
O exemplar desta semana tinha bom ar, agradável ao tacto, capa nada pretensiosa e discreta, estranhamente discreta.
Não havia semblante na contracapa e nada lhe dizia o apelido que singularizava aquele nome próprio gasto pertencente ao autor.

Gostava de os receber já encadernados, de sentir o papel na ponta dos dedos e de os cheirar.
Tudo isso faz parte do prazer da leitura, dizia, um lugar comum talvez, mas verdadeiro.

Para variar, este tinha um cheiro complexo e maravilhoso, indiciando uma impressão cara, fora do comum, mas contraditoriamente seca e monocolor.

Acompanhava-o um bilhete manuscrito com explicações directas e acutilantes, o que não era normal:
"Caro Frederico, hoje não te peço que revejas o texto. Diz-me antes o que achas dele, mas no prazo do costume. Atenção, é exemplar único, edição do próprio autor. Muito, Muito cuidado porque não há outro. Abraço, Zeca."
  
Como havia acontecido tantas vezes antes, embora agora o pedido fosse distinto, sentia que era o primeiro a tocar na versão física daquela obra, a ler o seu interior e a ter uma opinião sobre o resultado final, antes de tudo e todos.

De facto, o livro que segurava à altura dos olhos não exibia marcas, evidências de toque ou qualquer outro vestígio da presença humana naquelas folhas.

A sensação de privilégio durava sempre escassos segundos e esta semana, com mais razão de ser, tinha nas mãos um desafio ímpar: 232 páginas para pouco mais de 48 horas de um livro misterioso.

A palavra ULVINGA preenchia solitariamente a primeira folha e três páginas depois:

" Não sabia o Senhor que na maior das penumbras, quando me encarregava do seu cavalo ou em horas de merecido descanso os meus olhos, que tudo viam, sentiam a necessidade de deixar rastos das suas divinas intervenções. Se for esse o desígnio de Deus, encontrará em mim relato fiel da sua vontade espalhada pelas mãos de Popteto, alcançando Felicitas Julia Olisippo."

Instintivamente Frederico ajeitou os óculos e exclamou: Olá!? Mas o que é isto...? 


 

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