terça-feira, agosto 06, 2013

Primeiro dia de multa


- Diz-me, o que achas disto? - amparado pelas duas mãos o exemplar único foi depositado em cima da mesa e empurrado apenas por uma na direcção de João.
O peculiar livro roubou imediatamente o protagonismo das pratas, da fina cutelaria e dos manjares do Restaurante Aviz, onde haviam combinado encontrar-se para almoçar.

Era Terça-feira e Frederico ainda conservava em seu poder o objecto fonte de desvaire de José Mogno ou, simplesmente "Zé" quando era preciso pedir-lhe qualquer coisa, nomeadamente tempo.
O prazo terminara e o Zé havia passado todo o dia anterior a ligar-lhe, sem sucesso. Percebia-se: estava bem lixado.

João pusera de parte os talheres e, enquanto saboreava o maravilhoso pampo de Setúbal que se desfazia na boca, media agora cirurgicamente com os olhos, a uma distância considerável, o livro de capa grossa azul escura à sua frente.

Gostava de adivinhar a origem, a história e as pessoas que antes dele tinham estado em contacto com os objectos incomuns que Frederico lhe trazia.

Intrigado pela falta de apresentação ou explicação prévia - o que significava que Frederico não sabia nada sobre o livro - esboçou um sorriso de notório entusiasmo. Tinha prazer em ajudar, sobretudo quando a sua "bagagem", como gostava de lhe chamar, lho permitia.
Havia ainda algo de paternal na forma como João encarava estas interpelações de Frederico, como recebia as suas dúvidas, mas sobretudo como as esclarecia.

Estendeu a observação com ausência de toque até onde a sua curiosidade deixou.

Subitamente, lançou-se sobre ele, sentindo as rugosidades, tomando o seu peso e levando à fronte, tapando completamente a cara.

Fê-lo de forma despreocupada ignorando simplesmente os demais presentes na sala e, até, a perdiz invertida presa à parede que parecia olhar também para ele.

Em seguida, baixou o livro descobrindo os olhos fechados, não adormecidos, mas perscrutadores.

Ouviu-se um murmúrio repetitivo, uma lengalenga ou mnemónica sussurrada...os sons indiferenciados ganharam corpo e fisicalidade:
- gramagem, fibra, ph, espessura, coloração, textura, humidade, marca de água!

E abriu-o.

Por detrás da capa, apenas os olhos iluminados e brilhantes mexiam. Incrédulos pareciam.

Segundos depois num gesto que pareceu uma repulsa controlada deitou o objecto em cima da mesa e dirigiu a Frederico um olhar enraivecido que a voz acompanhou.

- Tu estás parvo!? Nestes anos todos não aprendeste nada? Tu fazes ideia do que é isto?

Sem permitir qualquer resposta, levantou-se e atravessou, como um raio, as portas de saloon em direcção à cozinha do Restaurante.

Segundos depois, ainda enraivecido, surgiu pela porta empunhando uma tesoura, película transparente e algo branco de plástico ou de borracha.

Sentou-se e com a destreza própria de alguém que sabe o que faz, desenrolou o tubo de celofane curtando uma pequena tira. Aproximou-se, então, um empregado com um copo contendo uma pequena quantidade de arroz que João despejou dentro da folha de celofane e enrolou em forma de saco, dando um nó na ponta. Calçou as luvas de borracha, pegou no livro e encostando o pequeno saco de arroz à capa deu sucessivas voltas com a película até ficar completamente coberto. Cortou com a tesoura o excedente.

Descalçou as luvas e devolveu todo o material ao empregado que ao ouvir "obrigado" se retirou com um vénia sincera e de admiração.

João viu-o afastar-se para dentro da cozinha e quando as portas retornaram com o efeito da mola, encarou Frederico.

- Agora nós. Quero saber como chegou este livro às tuas MÃOS!



1 comentário:

Anónimo disse...

Apercebi-me agora que "voltaste". Tinha-te deixado um sorriso :) como este há uns tempos.
Comentário ao que li até agora: muito bom! quero mais!
Um beijinho cheio de amizade,
Alegria