sexta-feira, outubro 31, 2003

Cinquenta Anos de Palco




“Sê bem-vindo à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, nós somos o Cénico de Direito”.
Repetida ao longo de quase 50 anos, a saudação de boas vindas com que o grupo de Teatro da Faculdade de Direito de Lisboa recebia os caloiros está, hoje, condenada a desaparecer.

O meu nome é Henrique Gomes, actual Director de Produção do Cénico e hoje represento os seus membros.
Decidi que não podia continuar calado face a tamanhos desprezo e desconhecimento no que diz repeito à história, obra e conquistas deste Grupo de Teatro, e que hoje se revelam cada mais sintomáticos de um fim próximo, desprestigiante e francamente injusto.

Tudo se deve, não à memória curta do público, porque esse felizmente é fiel e persistente mesmo nas alturas de pausas para ensaios, chegando mesmo a procurar informações sobre as nossas actividades junto da Faculdade.
Nem, tão pouco, se deve à escassez de actores e actrizes, já que quase uma centena de alunos se inscreve, anualmente, no atelier de pré-selecção que organizamos.
No que concerne à qualidade do nosso trabalho, basta que se refiram os sucessivos convites para participações em festivais e os concursos, que aceitam as nossas candidaturas para figurar num elenco limitado de grupos, nomeadamente, o Festival de Teatro ACASO, em Leiria e a MOSTRA de Teatro, organizado pela Câmara Municipal de Lisboa.

Aponto o dedo, sim, à entidade da qual fazemos parte enquanto núcleo, a AAFDL (associação de Estudantes da Faculdade de Direito de Lisboa). A ignorância e o desconhecimento da nossa existência são de tal maneira assustadores e inacreditáveis, que numa das nossas últimas representações no Teatro Maria Matos, incluída no Festival de Teatro Universitário de Lisboa(FATAL), e com a Peça “A Kulpa”, baseada no “Processo”, de Franz Kafka, um representante do departamento cultural da Associação de estudantes chegou mesmo a confessar, inconsciente do teor ofensivo do que viria a ser o seu desabafo pessoal, que não fazia ideia da qualidade do “seu Cénico”, um grupo só com meia centena de anos e desde sempre ligado à Faculdade.
Por outro lado, quem aceder à página de internet da AAFDL, verá que o Cénico é, de facto, mencionado enquanto núcleo, mas a verdade é que já temos página do grupo ( www.cenico.no.sapo.pt) há cerca de 3 anos e apesar dos múltiplos contactos para a adicionar à pequena menção, apenas obtivemos o silêncio característico do dolce fare niente.

Ano após ano, convencidos pelas promessas das campanhas, pelo desejo enérgico de mudança, pelos sorrisos afinal enganadores e pelo, hoje muito actual, falso interesse pela cultura, ou melhor, pela Cultura da Cultura.
No fim, confrontados com o vazio das palavras gravadas nas mentes, mas nunca no papel tal é a confiança entre futuros juristas, ficamos de mãos a abanar, não em termos de trabalho, porque simplesmente não podemos parar, mas a nível monetário, já que inevitavelmente e como é lógico, temos de remunerar o Encenador que infelizmente se submete a estas condições todos os anos.
Inacreditavelmente, depois de terem sido montadas duas peças que correspondem a dois anos de trabalho de encenação (“A Kulpa”, e “à espera de Godot”, a estrear no Festival de Teatro Acaso em Leiria a 9 de Novembro deste ano), o nosso encenador ainda não recebeu, até à data, qualquer remuneração, uma vez que a promessa feita pela AAFDL no início deste ano, de um subsídio dividido em três tranches em datas já decorridas, não foi mais uma vez cumprida.

Convencido de que é condenável este desrespeito por alguém que dignifica tanto o Grupo Cénico de Direito, e de que se trata de uma situação que não pode continuar a repetir-se, venho por este meio anunciar aos órgãos de comunicação social e restantes interessados, que a menos que algo seja feito no sentido de reparar a actual situação vergonhosa e degradante, o Cénico de Direito será forçado a deixar de pisar os palcos e a cessar a sua actividade enquanto Grupo de Teatro Universitário no final deste ano de 2003.

Ao nosso fundador, Malaquias de Lemos, falecido no dia 1 de Janeiro deste ano, e à sua família deixo o meu profundo agradecimento e a inevitável vergonha, que hoje carrego, por ser forçado a tomar atitude tão drástica, cerca de 50 anos depois de um acto de tanta coragem.



Em nome do Cénico

Henrique Martins Gomes

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